segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

TRIBUNAL E VEREDICTOS

Era noite avançada, e Ferreira se encontrava no bar. A madrugada caminhava lenta. O amanhecer muito longe. O boteco de madeira não se encontrava nem muito cheio, nem muito vazio. Uma luz meio apagada, moribunda e amarelada iluminava o lugar. A luz vinha de dois abajures de teto – o terceiro estava quebrado. A sensação era a de luz de velas.
Um dos abajures estava sobre a mesa de sinuca, na qual Ferreira jogava uma partida. Era uma partida disputada apenas por ele mesmo: Ferreira frente Ferreira; aquilo era essencialmente sua alma em jogo. Não deveria ser diferente, não deveria haver interferências ou interrupções. Alguém por acaso perturba um ser quando este se encontra em transe? Não, não se deve acordá-lo.
O outro abajur encontrava-se ao lado de um gordo careca enorme de cavanhaque, na altura de seus ombros. Ele empurrava mecanicamente aquela coisa – que mais parecia um chapéu de japonês amarelo – para frente. Rangendo feito lamento de metal, ou um ranger de dentes metálicos, a luminária ia e voltava para a sua mão, então ele tornava a empurrá-la. Mas talvez o abajur não fizesse barulho algum, e aquele som fosse o de um relógio próximo, confundindo a cabeça de Ferreira. Juntamente com as batidas de suas botas, eram os únicos sons escutados no bar. Passos para lá e para cá buscavam o melhor ângulo para a próxima tacada.
Um clima hostil parecia tomar conta do local. Aquelas pessoas envolta da mesa observando Ferreira jogar. A visão de Ferreira alcançava somente até o pescoço dos espectadores, pois ele estava inteiramente focado na partida, e via-os apenas ao fundo da mesa; eram meros coadjuvantes, talvez até dispensáveis.
- Quando é que acaba esta partida afinal? - Perguntou o gordo careca, que surpreendentemente saiu do seu lugar para o encontro de Ferreira.
Enquanto a mente de Ferreira ainda raciocinava a mil por hora, ele conseguiu parar por um segundo e situar-se. Pôde reparar que aquele sujeito estava vestido com uma camisa do Johnny Cash, resolveu chamá-lo mentalmente de Johnny.
- Quando eu torrar as 15 fichas que eu comprei. – Conseguiu responder, impaciente.
- Bom, isso é um problema. Dê uma olhada ao redor, quanta gente tá querendo jogar uma.
Foi aí que se deu conta realmente, praticamente uma multidão envolta.
- Meu dever é acabar com isso hoje. – Ignorando, deu progresso a partida.
Conseguiu ainda dar uma última tacada antes que Johnny o atacasse. Johnny acertou com um taco o seu estômago; depois quebrou o taco na mesa e partiu para a garganta de Ferreira. Ferreira ainda meio desacordado deu um soco na barriga gigante de seu inimigo. Johnny então revelou fraqueza, pois cambaleou tanto que deixou que fosse possível Ferreira destrinchar seu ódio.
O bar esvaziou-se, foram todos embora. Não era da conta de ninguém aquilo tudo, então saíram normalmente viver suas vidas. Alguns pegaram um táxi, outros foram a pé, não importava.
O ódio de toda a vida de Ferreira traduzia-se agora em golpes que balançavam a barriga de Johnny. “Quando é que vou parar?” perguntava-se Ferreira, fora de si. E agora, vendo seu adversário começar a babar feito cão com raiva é que não queria parar mesmo.
Como um mamute abatido, Johnny despencou ao chão. Ferreira então abaixa as calças de Johnny até a altura de seus joelhos, depois aperta com o taco seu saco contra o piso. O saco começa a inchar. Fica primeiro vermelho, roxo, azul... Multicolor. Feito sapo coaxando o saco infla mais ainda. “Não quero matá-lo” pensa Ferreira. O suor abundante em suas mãos revela nervosismo. “Por que me incomodaste?”
Então acontece o que parecia iminente: o saco estoura. Com o estouro o bar fica repleto de mini-johnnys pelo ar. Uma explosão de Johnnys. Todos a encarar Ferreira. Fitando-o nada satisfeitos. Derrubam todas as bolas da mesa de sinuca restantes e dizem “Fim de jogo”.
Em uníssono para Ferreira:
- É chegada a sua hora.
- Ninguém me diz quando é chegada a minha hora. Talvez ela nunca chegue. Estava eu no meu tribunal agora mesmo, quem sabe eu ganhasse. Mas fui interrompido.
- Nós somos seu veredicto. No seu último lance você fez tudo o que desejou. Somos seu veredicto.
Ferreira não pode mais com a sinuca, nem com Johnnys ou com a madrugada. Saca sua arma. Atira na sua mão esquerda.
- Estas mãos que já mataram e já roubaram.
Atira nos sues pés.
- E estes pés que já fugiram do mundo há muito tempo.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

LA CHINOISE (1967) - GODARD




Fragmento de La Chinoise:
"A classe operária francesa não se unirá politicamente, nem irá às barricadas, por um aumento de 12% no salário.
No Futuro próximo, não haverá uma crise capitalista grande o suficiente que empurrem os trabalhadores a lutarem pelos seus interesses vitais através de uma greve geral revolucionária ou uma insurreição armada."


O filme inicia-se com as frases acima sendo lidas por um jovem francês. Ele é morador de um apartamento que divide com mais quatro pessoas. O apartamento é a moradia e a sede ao mesmo tempo de cinco integrantes de uma célula comunista recém criada por eles. Embasam-se todos na ideologia marxista-leninista.

O apartamento é repleto de pequenos livros vermelhos. Estudiosos desses livros, ao longo do filme lêem e declamam seus escritos. Diversas frases de caráter revolucionário são expostas dessa forma. Porém, dentro do apartamento mesmo está presente uma divisão de classes, contrariando as idéias comunistas. Não fica claro se os moradores têm consciência disso, parece algo natural, no entanto não deixa de ser contraditório. Há Yvonne, a "empregada" da casa, somente ela é vista trabalhando, limpando os móveis e lavando a louça. Parece que essa isenção dos outros integrantes nos afazeres domésticos, justifica-se pela superioridade intelectual deles perante Yvonne.

É de se chamar a atenção, uma frase dita no início do filme pelo casal "líder" do grupo: "Nós somos o discurso do outros". Assim, é sugerido um fanatismo cego. Há outra passagem constatando tal fanatismo.

Na cena, um participante recém expulso do grupo por não querer seguir uma decisão da célula (ato totalmente ditatorial), parece dar um depoimento sobre sua expulsão e sobre seus ex-camaradas. Todas as suas declarações não soam como vingativas ou rancorosas, apenas expõem suas opiniões. Ele é perguntado se os participantes do grupo eram infantis. Ele diz que sim, e conta uma história para tentar explicar.

É a história das crianças egípcias. Os egípcios acreditavam falar a linguagem dos deuses, e para provar isso, resolveram isolar algumas crianças recém-nascidas numa casa completamente alheia à sociedade. Eles queriam mostrar que as crianças aprenderiam a falar egípcio sozinhas. Então, após 15 anos eles voltam à casa. E o que vêem são as crianças se comunicando entre si, porém, balindo como ovelhas. Eles não notaram, mas havia uma baia de ovelhas próxima à casa.

Depois de contar a história, ele diz que naquele apartamento, para eles, o marxismo-leninismo era como a ovelha da história.
Essa declaração, se encaixa com a fala do início do filme: “Nós somos o discurso dos outros”. E serve também para provar a cegueira dos moradores do apartamento. Pois o marxismo-leninismo os vedava, privando-os de pensarem por si mesmos. Negando a realidade social, visto que eles quase nunca são vistos fora do apartamento. Efetivamente, eles não faziam parte da realidade.

terça-feira, 4 de novembro de 2008

HAVER

paralelo ao céu há o mar
paralelo ao sim há o não

paralelo ao inferno há o sim
paralelo ao paraíso há o não

sábado, 1 de novembro de 2008

ANTEVER

Recolheu-se após o ato incesto. Aliás, recolheram-se, retiraram-se ambos do convívio humano.
Quanta sujeira, quanta veleidade, o mundo não é capaz de aceitar. Preferem emendar com palavras flácidas, sempre a corrigirem. Apagam rabiscos mal feitos com suas borrachas. Lêem jornais – manchetes invocam o apocalipse. Apontam com seus dedos de espada. Vomitam catástrofes iminentes.
Recolheram-se os pecadores, os amantes, os irmãos.

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

DA RUA, DO LIXO

Quilos por dia.
À noite, litros.
De dia, lixo.
À noite, suor impregnado,
Colhido.

Cama de pedra.
Se há casa, papelão.
A pedra, do chão.
Se há casa, lixo aos quilos,
Colhido.

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

ENCARNAR EM OUTRO

Experiências acumuladas. Visões confundidas. Sentimentos embaralhados. Emoções censuradas. Universos em par.
Escrevo para encarnar em seres simples. Penetrar em seu espírito. Vagar por seus universos, quantas estrelas me atraem. Mas busco residir em seus mistérios. Na escuridão sempre evitada.
Com coração alheio, escrevo o que os olhos encarnados vêem e o que as veias sentem. Saem escritos rabiscados. Textos borrados, fora de foco.
Quero lugar num cômodo sombrio da sua mente. Naquele seu quarto secreto. É sombrio e você sempre o evita. Eu não. Eu o faço de minha moradia.

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

PASSADO NU, VERDADE NU

Não tenho roupa para dormir hoje, nenhuma me serve. Nu é tão mais verdadeiro. Revivo, assim, antepassados meus. Macacos ou seres racionais.
Assopro os antepassados, eles vão para longe, voando.
Mais uma vez este disco. Este embalo como uma passagem aos dias com gosto de uva e cheiro de flor. Um cartão de visitas também, convidando-me a me entregar. Suplicando-me para viajar e flutuar.
Vou dormir nu hoje, em lembranças.

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

DOPADO

Dopado há meses.
Talvez seja melhor acordar
dar de cara nos muros
pisar nos cacos
e cheirar a carniça

sábado, 9 de agosto de 2008

PASSAGEM

Às palavras é que escrevo. Às palavras é que peço desculpas. Quanto tempo elas me esperam ali, olhando para mim, esperando alguma ação minha. Todas embaralhadas, pedindo, implorando para serem postas em linhas retas, ou nem tão retas assim.
Estão ali, como estão lá naquelas montanhas longínquas do meu horizonte, e essas palavras, são apenas as quais meus olhos humanos conseguem ver. Olhos humanos: tão limitados, tão defeituosos, tão rebeldes, que nos mostram apenas o olhar viciado do dia-a-dia. Apresentam-nos uma vida encubada. Aquilo que não existe a olho nu é jogado para detrás das nuvens brancas que, quanto mais tempo passa, mais ficam volumosas, mais intransponíveis ainda.
Volto às palavras jogadas ali no canto. Nas minhas linhas tortas tento uma passagem para detrás das nuvens. Como pregos, usarei as palavras jogadas ali no canto para perfurar estes meus olhos viciados e nebulosos. E, mesmo cego, atravessar as nuvens, pois eu ainda confio nas palavras, mesmo elas estando tão embaralhadas.

sexta-feira, 11 de julho de 2008

IF. SUMMER 68. FAT OLD SUN.

E a canção corria.
O seu pescoço, delicioso.
Aquelas marcas.
Aqueles beijos.

Com seu balanço
Eu passeava, beijava.
Naquelas curvas.
Aquela pele.

E este disco agora me lembra você.
Você então vem flutuando.
E eu viajo
Flutuando

segunda-feira, 7 de julho de 2008

ABISMOS SOLITÁRIOS

Sou casada. E há noites em que ele, meu marido, sai. Sem nenhum aviso, um mistério aonde vai. Eu finjo não acordar quando ele se levanta da cama de madrugada. Veste-se; vai ao banheiro; acende a luz da cozinha – posso até ouvir o clic do interruptor; apaga a luz; abre a porta e vai embora. Tudo furtivamente.
E fico eu na cama a imaginar. Imaginar aonde ele vai e o que vai fazer. Dentre outras coisas, imagino-me também o seguindo numa dessas madrugadas. Feita uma sombra. Aliás, sinto-me muitas vezes como uma sombra da vida dele. Eu sendo o seu passado, somente o passado. O presente, esse é recheado de passeios furtivos e solitários pela madrugada.
E fico eu na cama escutando a pouca movimentação da minha rua: três horas o caminhão de lixo passa. Em seguida, quarenta minutos depois, é o guardinha da rua quem passa – píííííííí pí – com seu apito. Emite um silvo longuíssimo, depois um breve. E aos poucos o som vai diminuindo, até ir-se embora. Vai-se embora assim como meu marido. O som do apito, ficando aos poucos moribundo, indo para longe vigiar outras ruas, me deixa tão mal; o sentimento de solidão me invade. Onde estará Roberto? Por quais calçadas anda?
O relógio de ponteiros a trabalhar ao lado da cama. Pousado numa mesinha em companhia do abajur, sonolento. O tempo não passa; ele não volta. Onde estará?
Quero espantar algo; quero encontrar algo; quero cantarolar. E, baixinho, sussurro como um canto, acompanhando o tic-tac do relógio: um-dois, um-dois.


Adoro andar. Principalmente na madrugada. Pois assim posso perambular tranqüilo pelas entranhas vazias – sem carros e pessoas indo e vindo – da cidade. Contemplo apenas seu esqueleto erguido: os prédios. Caminho pelo centro; chateio-me com as vitrines em demasia. É demais, um exagero.
O pior de tudo são os manequins em pé por detrás das vitrines. Todos eles a me observar. Não têm olhos, porém, certamente nem precisam, suas cabeças já vêem por si só. Vigiam-me enquanto ando. Como são horríveis! Detestáveis! Vou caminhando, vou caminhando; e eles parecem contar meus passos: um-dois, um-dois.

sexta-feira, 27 de junho de 2008

SANTA ESPOSA ALGOZ

Tomei litros de álcool puro
A fim de vomitar definitivamente tudo
De fato foi-se tudo ao chão
Meus rins, tripas, e por fim meu coração



Um sujeito a carregar suas entranhas numa trouxa. O coração ainda por bater, intrépido. As lembranças ainda por remoer, aflitivas.
Vagando; saboreando o ar entrar-lhe pelas narinas, e percorrer seu corpo vazio.
Vagando; a cada tropeço de cansaço, deixando-se caído para escrever versos.


Não, minha querida.
Não me traga esta toalha
Vermelho-sangue.

Quero perceber minhas feridas.
Vamos, traga-me aquela
Branca-pura.


Perambulando num deserto. Sem cruzar com um ser sequer. Vento não havia. Ainda assim, insiste em respirar. Saboreia o ar, pesaroso ar.
Da memória afloram-se remorsos. Houve um porquê em se estripar? O ciúme e a desconfiança, velhas conhecidas.


Naquela noite escura,
Ouve-se um sussurro.
Era o seu, eu sei.

Na cama, ao invés de dormir,
Você sonhava e suspirava
Por um outro alguém.



O andar tornou-se mais cambaleante, ao passo que os pensamentos tornavam-se mais pesados e remorsos. Idéia de adultério já não era mais tão certa.
Perdido, completamente perdido; os pés trilhavam caminhos sem destino, ao nada. O Sol, vermelho, a perseguir o andante. Aos poucos ele rogava piedade ao Sol, até se este lhe presenteasse com a morte. A morte viria doce.
Num desses lances...


Eu a vi!
Tão Santa
Tão Bela
Anjo na Terra


Encontra uma árvore imensa, altíssima. Ao pé dela, um pequeno lago límpido. Lá no alto da copa, nos últimos galhos, em meio a lindas flores coloridas de lilás, está ela, seu amor. Uma santa; ou a algoz de toda a sua angústia. Àquela vista, a santa parece o fixar ao chão. Não obstante, o sujeito ainda mergulha no lago. Suas entranhas a tomar sol na beira.
Agora, refrescado, ele fita-lhe lá no alto. É capaz de vê-la iluminada. Arrependido, totalmente arrependido, pede-lhe perdão. Suplica por graça. Estende a sua mão. Curva sua cabeça. Diz não havia razão da desconfiança.
A santa parece não estar presente, o que é comum quanto aos santos; o olhar distante, o corpo estático como pedra. Um vestido branco e púrpuro a cobre placidamente.
O andante reconhece-se pecador. Implacável. Ajoelha-se diante da árvore; prostra-se por inteiro à santa – sua amada e odiada conjugue.
Não há mais solução.
Junta seu intestino jogado ali no gramado do oásis e sobe na árvore. Envolve as tripas no seu pescoço e ata um nó. Amarra-o a um galho rígido... E salta. Por dois segundos voa.
Não vê? Ele buscava os céus.
A digníssima santa, por quem tanto alimentara desconfiança misturada com ódio, continua altiva a tocar o céu.
Mais abaixo, suspendido por um rígido galho, uma espécie de pêndulo preguiçoso. Preguiçoso, pois, ali, vento não havia.

06:00

- Tive um sonho tão lindo e, quando acordei, pensei ainda estar a sonhar, pois você estava ao meu lado. Tão linda adormecida.

sexta-feira, 13 de junho de 2008

A EXISTÊNCIA DE RUBIAN

Rubian perdido em seu labirinto sai a procura de ar.
Duas horas a mergulhar, nadando na calçada de pedras brancas da Praça Rui Barbosa; ele se perde, sem ar.
Duas horas a nadar, mergulhando no verde escuro das árvores da Praça Osório; ele se perde, sem ar.
O relógio da praça está parado: nove horas.
Nem um minuto a mais: é hora de partir.
Quem sabe ele volte.
Contudo, os ponteiros não se movem, sempre é hora de partir.
Sem respirar Rubian existe, seja onde for.

sábado, 7 de junho de 2008

O SENHOR DA BANCA E SUA VIDA SECRETA

“Vai lá, manda brasa!”, são as palavras roucas que eu ouço após catar umas moedas escondidas no bolso e pedir um cigarro. Quem as diz é o senhor da banquinha. Um sujeito muito peculiar de olhos azuis pálidos, esbugalhados por detrás dos óculos de lentes espessas. Os cabelos, ¾ grisalhos e 2/3 já ausentes, moldam uma careca digna de louco. Pois o que lhe resta de cabelo, está sempre esvoaçado, parecendo que os fios têm vida própria e lutam para se descolarem do couro cabeludo. Aliás, todos os trejeitos do senhor da banquinha desenham um louco por detrás do balcão, repleto de cigarros para os jovens e balas para a piazada.
Desconfio que o velho da banca não ocupe seus dias somente com os “Vai lá, manda brasa!”, creio que seja um escritor. Desses que mantém sigilo extremo e até usam pseudônimo para assinarem suas obras. Imagino-o fechando a banca depois de um longo dia de trabalho acompanhado dos cigarros, balas e clientes. E se dirigindo a algum café da Rua XV.
Sentado, com o olhar atento; ouvidos aguçados; o bloco e a caneta na mão; a xícara de café meio cheia pousada sobre a mesa de canto; anota todas as histórias que consegue ouvir. Transcrevendo-as a fim de não perder nenhuma sensibilidade sequer; nenhuma emoção sequer. O senhor da banca utiliza-se do anonimato para fazer-se quase invisível, apenas um móvel ali parado, um abajur talvez.
Qualquer dia desses, após o tradicional “Vai lá, manda brasa!”, irei perguntar para o senhor da banquinha como anda sua vida literária, se está numa fase criativa e tudo mais, e, se de fato for escritor, pedirei um descontinho nalguns livros dele. Mas, se ele não for um, quem se passará por louco na história toda, serei eu.

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Essa foi pro Dalton Trevisan.
Dalton Trevisan viaja por Curitiba.

# Documentário: Daltonismo

terça-feira, 3 de junho de 2008

PUTA QUE TE PARIU

Puta que pariu! Sim, essa é a expressão certa pra agora. É uma mistura de desespero e de confusão quanto ao futuro, ao meu futuro. Eu realmente não sei mais qual caminho trilhar. Às vezes o mais fácil não é o mais adequado. Eu acabo desperdiçando um potencial. Na verdade, um suposto potencial, pois eu também não sei ao certo se realmente o tenho ou não.
E acabo dizendo puta que pariu ao dobro quando eu olho a minha volta e nada me atrai. Pessimismo. Acredito que ninguém queira conviver com tal pessoa dona dessa visão. Quem sabe preciso mesmo de um oftalmologista. Ou de uma puta. Não daquela que te pariu, alguma outra.
É verdade. Uma vez me disseram: “Não planeje tanto assim, faça mais.” É verdade, meu deus, quem foi que disse isso me pergunto agora. Talvez a puta. Aquela que você conhece bem. Ah, vai à merda você, sua mãe, e todas as teorias medíocres e estereotipadas dela. Eu diria (a ela, quem sabe): “Muito fácil falar, quero ver é fazer”.
Quanto ao meu futuro? Realmente estou quase a dizer: “Foda-se”.

segunda-feira, 2 de junho de 2008

TINTA PRETA, O FUTURO

Futuro escuro.
É algo confuso
e obscuro hoje.
Do amanhã vêm morcegos.

Tinta preta.
O papel em branco
preenchido de preto.
Isso é futuro, futuro escuro.

Sem sonhos.
Hoje, nenhum mais.
Acordei atordoado.
Ainda de olhos fechados.

domingo, 25 de maio de 2008

E NO FIM AMANTE

A luz vermelha pisca.
Um instante.
A luz vermelha torna a piscar.
Vejo somente o seu brilho refletido em algo escuro à minha frente. É na penumbra que a luz se faz enxergar.
Torna a piscar. Brilha, me atormenta.
Penumbra.
Eu deitado numa cama sem-vergonha. Sinto meus ossos contra o colchão vagabundo e murcho.
A luz pisca.
Alguma boca assobia uma canção.
É uma canção de ninar.
A luz vermelha. Meus ossos. Assobio. Escuridão.
Penso em Marília. Belos cabelos os dela.
Devaneio de olhos abertos: eu e ela num jardim, o sol refletindo em nossos olhos.
O devaneio se esvaece.
É a luz vermelha outra vez.
Acordou-me. Desviou-me a atenção. E fez-me aflorar outras idéias. Idéias malévolas.

Idéias impertinentes:
Da onde está vindo esse maldito brilho vermelho?! Vermelho que me lembra tanto sangue. Sangue humano, animal... Que seja! Mas sangue.
A luz volta a piscar.
Sinto meus ossos cada vez mais pesados.
O assobiador não pára, a canção parece ser longa ou ele já a repetiu várias vezes e eu nem percebi.
Aperto as mãos dela junto ao meu peito. Que mãos delicadas. Que cabelos cheirosos. Que corpo esbelto. Contemplo-a mesmo no escuro. Acaricio-a.
Mantenho meus olhos abertos.
Por instantes somente a escuridão. Mas logo vem a luz.
A luz vermelha continua a me desafiar.

O assobio cessou. A luz ainda não.
O brilho volta, refletido na minha frente. Vem e me acusa. Despeja aos meus olhos este vermelho-sangue. Um borrão vermelho estampado do tamanho de uma cabeça.
A mão dela junto ao meu peito.
A luz vermelha e o sangue que foi derramado.
Há pouco, um respirar foi interrompido.

Eu e ela na cama deitados lado a lado. Afundo meus dedos nos seus cabelos lisos. Percorro com os dedos, do começo ao fim dos fios. Aperto a sua mão, os dedos são finos e frágeis, trago-a junto ao meu peito e a levo até minha boca beijando-lhe. A luz vermelha outra vez. Aquele borrão-sangue do tamanho de uma cabeça.
Porém as mãos dela estão frias demais.
Sinto calafrios.
Sinto o silêncio.
A penumbra.
A luz vermelha.
O sangue.
Sinto-me, pela primeira vez, assassino.
- Durma em paz, meu amor.
Sinto-me, pela primeira vez, amante.

sexta-feira, 23 de maio de 2008

DO PSEUDOBEM-ESTAR AOS REMÉDIOS

Tenho um apartamento branco no centro da cidade.
Minha namorada é linda.
Mas às vezes sou um pouco doentio.
Às vezes sinto-me corroído por dentro.

(o tempo passa)

Trouxeram-me remédios da farmácia da rua ao lado.
Minha namorada fugiu.
Mas às vezes eu a vejo em mim.
Às vezes sinto-me preso a ela ainda.

(o tempo passa e voa)

Troco olhares doentios comigo mesmo.
E vejo as coisas assim:
Dentro de mim, é somente ela.
Fora de mim, são só os remédios.

(o tempo voa e leva pra longe)

Tenho agora uma sala só minha afastada da cidade e de tudo.
Minha namorada nem me viu.
Às vezes me carregam pra fora dessa sala.
E meus olhos vêem apenas jardins desbotados.

(é tempo de remédios)

Na sala escura, além da solidão:
Uma janela sem vidros.
Uma porta de ferro.
E remédios.

terça-feira, 20 de maio de 2008

DURMA, É MELHOR

Não.
Durma, é melhor.
Não acha? Pense em algo bom, sonhe com bosques e jardins.
Não consegue? Claro que consegue. Procure em si resquícios da sua infância.
Nunca teve? Procure então fechar os olhos e esquecer.
Esqueça tudo, apenas vislumbre o escuro ao cerrar os olhos.

Sei que se cansou de tudo. Sei também que o futuro não te atrai mais.

Onde eu estou? Estou há tempos ao seu lado, nunca me percebeu?
Eu sei disso. Sempre sussurrei ao seu ouvido, nunca me deu atenção.
E é agora, quando já está tudo consumido, tudo dado por acabado, que enfim me ouviste.
Pois não pare agora então.
Feche os olhos, vamos dormir.

O sonho é melhor.
Você ainda pode viver.
Você escolhe: morrer ou viver.
Não meu bem, isso não foi uma pergunta.

Sim. Estou indo, me acompanhe.


sábado, 17 de maio de 2008

TIQUETAQUEAR E CHATEAÇÕES

Eu odeio o tique-taque incessante.
É impossível dormir com ele.

Assim como as várias xícaras de chá,
Que não me deixam sair de casa.

Pelo menos eu não quero sair.

Na verdade, não quero nem dormir,
E nem sair de casa, e nem me chatear.

Porém o tiquetaquear me chateia muito.

sexta-feira, 9 de maio de 2008

VOAR UMA VEZ

Da onde eu moro
O vento chega tão forte
Da onde eu moro
O vento corta tudo por onde passa

Onde eu moro é tão alto
Muito mais alto do que minha percepção alcança
Mas meus olhos vêem
Meus olhos me convencem de que o chão está próximo

O chão me convida
Eu gostaria, é um convite tentador
Quero tentar, estou encantado
Quero tentar, estou pirado
Voar uma vez, já sinto o vento

quarta-feira, 7 de maio de 2008

JUSTIFIQUE PELO PÓ

Oh, meu amor! Justifique minhas atitudes pelo pó.
Àquele que me traz bem-estar repentino e breve,
E que me leva (como água que escorre para o ralo) todas as esperanças da vida.
Justifique pelo pó, meu amor.


quinta-feira, 1 de maio de 2008

ZUMBIDOS DE BETONEIRA

Faz quantos anos, um e meio, dois já...? Não sei. Só sei que são em todas as manhãs que aquelas abelhas gigantes zumbem inimaginavelmente alto no lado de fora do meu apartamento. Estão sempre meio longe, no entanto parecem estar do meu lado. Aquele barulho ensurdecedor e ininterrupto adentra minha cabeça fazendo-a praticamente explodir.
Enquanto ainda insisto na cama tentando dormir, fico planejando. Planejo ataques aos abelhões com foguetes, mísseis, fuzis, pistolas, e até mesmo com facas. Imaginei-me com uma espada típica chinesa, entrando na mega-colméia ainda em construção deles, estraçalhando todos sem dó, fazendo-os sofrerem bastante antes de enfim matá-los. É claro que com isso não resolveria definitivamente a situação, mas a curto prazo resolveria, até que chegassem novos abelhões para continuarem a construção da mega-colméia ao lado do meu prédio.
Finalmente coloquei meus planos em prática. Tomei coragem e matei todos os abelhões. Fui implacável. O silêncio reina nas atuais manhãs. Contudo, agora é o silêncio que me atormenta. Meu ouvido fica apitando como se tivesse ouvido um barulho extremamente alto e constante por um longo tempo. E deveras ouvi! Por dois anos, ou um e meio.
Ao longo desse período instalou-se uma grande confusão no meu espírito. Sempre estive justificando-a pela aporrinhação das abelhas barulhentas. Porém o silêncio tem me sufocado tanto, que chego mesmo a zunir baixinho para mim, pra ver se assim consigo enfim dormir. Não adianta...
As coisas estão tão embaralhadas, que já não sei mais com o quê estou acostumado; se é com os ruídos ensurdecedores, ou se é com o silêncio sepulcral. Há momentos que minha própria cabeça encarrega-se de me responder, criando sons, os zunidos dos tais abelhões já falecidos. No entanto é minha própria cabeça também que se encarrega de instaurar tamanha confusão no meu espírito; ela teima em me persuadir de que eu de fato não matei uma mosca sequer, e que eu sequer tenho um apartamento, e que eu sequer existo! Traduz todos os meus sentimentos como imaginação minha.

Por hora, me questiono se realmente foi por causa das abelhas que não dormi durante esses dois anos, ou um ano e meio. Pois ainda não durmo! Qual o verdadeiro antídoto? Não sei.
Olhando para fora da minha janela, agora só vejo fumaça. Resquícios de vidas.

quarta-feira, 30 de abril de 2008

Otimismo não é meu forte, admito.
E às vezes - na maioria das vezes posso dizer - meu pessimismo é sem motivo.

terça-feira, 22 de abril de 2008

TRISTEZAS DE RUBIAN, O PESSIMISTA

Palavras de uma pessoa próxima mesmo: “O Rubian é uma pessoa depressiva.” O Rubian diz: “Olhe a sua volta, quantas coisas deprimentes. Você acredita ter aprendido alguma coisa, mas quando vai pô-la em prática, percebe que na verdade não aprendeu merda nenhuma.”.

O Rubian é carregado de traumas, complexos, tristeza. E quando olha para a insignificância dos seus problemas, sente-se fraco a valer. Quantas pessoas têm traumas muito maiores e vivem tão felizes, contentes, alegres. Percebe que exagera um pouco. Realmente se esquece das virtudes – das suas virtudes. Parece que nos seus pensamentos não há espaço para o positivo, somente para o deprimente.

O Rubian rola horas na cama sem conseguir dormir. Sua cabeça não pára, teimam pensamentos demasiado lúgubres, soturnos mesmo. Pensamentos que implicam uma visão angustiante de tudo ao seu redor, deveras sobre tudo, principalmente acerca do quê é, e de sua falta de capacidade política, de sua dificuldade nos relacionamentos humanos. Procura sempre explicações externas para as suas sensações. É totalmente errante quanto a isso, tudo vem do seu interior.

O Rubian procura explicações para a sua falta de sono; talvez por ter se excedido um pouco no café, talvez por conta das várias horas em frente ao computador. Da mesma forma, ele procura justificativas para a sua profunda tristeza que insiste; talvez pelo dia ter nascido tão nublado com nuvens tão escuras, talvez pelo fato de a porcaria do pão ter caído das suas mãos com a manteiga virada para o chão.

sábado, 19 de abril de 2008

OS OCUPADÍSSIMOS

Não entendo porque as pessoas sempre vivem num tremendo esforço constante para se mostrarem ocupadas, mostrarem que sempre estão fazendo alguma coisa, por mais imbecil que seja. Mas é demais para elas, demonstrarem que não fazem na verdade nada. Preferem até mesmo dizer que estão ocupadas fazendo algo idiota e inútil. Para mim, tais pessoas, são as mais deprimentes. E me dá preguiça só em olhá-las esbanjando frivolidade. E falo sério. Pois eu acabo esquecendo tudo o que elas realmente são, e vendo somente o que elas querem parecer ser. Pura enganação por parte delas. As “pessoas ocupadas” com certeza são as mais hipócritas. E o pior é que, tal falsidade de identidade, acaba pegando, ofuscando a real pessoa por detrás dessa cortina de futilidades ocupacionais. Realmente não sou eu quem julga com a maior justiça de todos os julgamentos, nem sou um psicólogo ou algo que o valha. Portanto, prefiro distância de tais pessoas, e continuar somente observando-as com um olhar um tanto irônico. E digo: sou um desocupado, nos finais de semana, por exemplo.

domingo, 13 de abril de 2008

Aquele Que Possui Alma

Quem tem alma sente.
Nunca declara quem é, pois não o sabe.
Por vezes, olha-te e mente.
Mas a mentira, para a alma, é a dúvida de quem é.

Ter alma é metamorfosear-se.
É estar como a natureza, em constante mudança.
Mentira seria se nunca se alterasse.
Olha que mentira, uma alma presa na verdade.

domingo, 6 de abril de 2008

Rotina de Precipícios

Quantas vezes comecei a andar e, quando contei cem passadas, olhei para trás e vi que o precipício ainda se encontrava aos meus calcanhares. Logo, me perguntava se era eu que havia apenas imaginado ter andado, ou se o precipício que vinha me perseguindo.
É isso que se repete em todos os meus supostos dias. Me fazendo duvidar da minha existência. Embaralhando minha concepção do que é real e do que é imaginação.

quarta-feira, 2 de abril de 2008

Sem Metamorfoses - Os Dias Não Passam

Meus dias têm se repetido tanto, que tenho a impressão de ser sempre o mesmo dia toda vez, desde todo amanhecer até todo anoitecer. Sempre na mesma hora, aquele ônibus chega, aquela pessoa passa por mim, o sinaleiro fica vermelho, o carro faz a curva passando por cima da poça, a velha sorri para o pombo aos seus pés. E é sempre quando o pombo voa e bate as asas a poucos centímetros dos meus olhos é que eu desperto de uma leve sonolência.
O clima sempre frio e nublado, o sol nem aparece no céu. Por vezes, tal rotina estagnante, me leva a indagar se realmente estou vivo, a viver dia após dia, ou se estou num castigo póstumo, onde vivencio diariamente os exatos mesmos fatos.
Será que de depois de dormir, acordo no mesmo dia em que fui me deitar para dormir? Será que enquanto o meu inverno de dias nublados e sem sol nunca tem fim, as outras pessoas já curtiram o Verão, a Primavera e o Outono? Será que enquanto acredito estar vivendo dias, meses, anos, nenhuma taturana sequer virou uma borboleta?

quarta-feira, 26 de março de 2008

Sem Êxitos Nas Mudanças (até quando?)

Numa necessidade intensa de alguma mudança, não quero mais me contentar no mero ato de pegar uma tesoura e retalhar meu próprio cabelo. Isso realmente não é mais uma transformação digna de impacto pra minha vida.

segunda-feira, 24 de março de 2008

Enigmas, Soluções e Passeios

Da sua boca, nenhuma palavra sequer.
Um enigma.

Olharam-no nos olhos: enigma solucionado.
Enfim, através de seus olhos, viram os muitos horizontes os quais ele sempre quis mostrar a todos.
Enigma solucionado.

Basta agora descobrirem em qual dimensão ele se encontra no momento.
Talvez na Terra, talvez não.
Outro engima.

Será apenas um passeio pelas estradas intersiderais.
Um passeio intersideral engimático.

segunda-feira, 17 de março de 2008

Traços e Contornos Longe de Mim

Eu procuro os seus traços
Em cada pessoa que vejo.
Vai ver os seus contornos
Já voaram para outro lado,
Longe de mim.

E fico apenas com seus traços
Que se multiplicam,
Misturam-se,
E esboçam o seu rosto
Diante das nuvens.

quarta-feira, 12 de março de 2008

Acordou De Repente

Acordou de repente. Somente abriu os olhos. E o que viu - o que conseguiu distinguir naquela escuridão - foram dezenas de pessoas sentadas amontoadas a sua volta. Apenas uma lâmpada cintilava quase em vão; uma luz amarelada, meio apagada, realmente inútil para iluminar aquele lugar. Percebeu que se encontrava num porão de uma casa velha de madeira. As paredes do porão eram de um branco amarelado pelo tempo. As outras pessoas, ou olhavam para baixo, melancólicas, perdidas e sem esperanças; ou olhavam para cima, como que rogando por um socorro dos céus. Todos imundos, pelo que ele conseguia perceber.

Enfim, olhou para si próprio, também se encontrava imundo. Estava descalço. Os pés sujos de sangue, barro empastado, e cinzas. Lampejou-lhe à mente uma casa pegando fogo, e uma fuga desesperada – a sua fuga.

O que quebrava o silêncio angustiante eram os gemidos de alguém em desespero, porém, sem forças para fazer algo mais do que simplesmente gemer, ou o barulho de um esguicho, provavelmente alguém vomitando. O ar chegava-lhe às narinas e adentrava no seu corpo queimando-o por dentro, era o odor da merda e dos vômitos invadindo-o. O ar estava sólido. Alguém tossia ao seu lado, outro resmungava no outro canto, no entanto, jamais veria os rostos de quem fazia tais coisas. Sentiu-se só.

Não compreendia por que estava ali. Deu-se conta de que sua memória esvaziara-se. Não conseguia lembrar de nada anterior àquele porão, nada de antes de abrir os olhos subitamente e se deparar com pessoas que jamais vira, todas castigadas pela desesperança estampada em seus olhos. Não sabia o quê era, e nem quem era.

A fome ia apertando suas entranhas. Tentou se levantar, mas, foi traído pelo seu corpo, incapaz de se levantar um palmo do chão. Era a fome que o derrubava; era aquele lugar que o derrubava; eram aquelas pessoas que o derrubava; era aquela amnésia que o derrubava. Estava simplesmente acabado. Perturbava-se ao lembrar que não se recordava de definitivamente nada, apenas da casa pegando fogo, e da sua fuga. Mais nada vinha-lhe à mente acerca de seu passado.

Ouviu o vidro de uma janela se quebrando, não conseguia distinguir se foi ao longe ou se foi perto que se quebrou o tal vidro. Lá em cima, uma rádio ressoava uma música árabe. De repente, o som cessara. Parara ante mesmo de a música terminar. O que se fez ouvir depois, foram botas que batiam no chão do andar superior. Muitas botas. Produziam um som assustador. De fato, todos arregalaram os olhos assustados. Aguçaram os ouvidos e se encolheram.

De súbito, a porta que dava para o térreo se abriu. Surgiram então homens com uniformes e munidos de armas. Eram soldados. Gritavam palavras desconhecidas, de uma outra língua.

As pessoas no porão quase não reagiram, permaneceram paradas, estáticas pelo terror. Da mesma forma que os soldados entraram abruptamente, começaram a atirar nos esfarrapados ali presentes de repente. Um a um, pretendiam matar a todos. Pareciam economizar balas, pois, metodicamente, disparavam apenas uma bala certeira no meio da testa de cada um. De tão exaustos, ninguém esboçava alguma atitude de tentar fugir e sobreviver àquilo. Os olhares eram como os de cordeiros que já sabiam que isso iria acontecer a eles, e que não havia nada a se fazer. Resignados. Uma morte resignada.

Enfim, chegara a sua vez. E foi aí, frente a frente com uma metralhadora russa Kalashnikova, que compreendeu – lembrara- o quê era: um órfão, um refugiado, um acuado de guerra. E em breve - já tinha esta convicção - tornar-se-ia mais um fantasma de guerra com um furo no meio da testa. E suas lembranças; sua vida; sua personalidade; seus conhecimentos; sua história; logo contrastariam em vermelho com a parede amarelada detrás dele.

sexta-feira, 7 de março de 2008

Quem Vomita Corações

Quem nunca amarrara seu coração, e expeliu-o vomitando? Vomita. Pega então seu coração, já amarrado e apertado devido à angústia dos seus dias repetitivos, e larga-o em algum canto qualquer do seu quarto. Esquece-se dele por dias a fio.
Quem nunca conheceu alguém que já fizera isso? Enfim, olha-se no espelho e reconhece quem vomita corações. Olha pro canto do quarto e vê o seu coração, ali largado, já fedendo, já mofando. Conclui que afinal não o esquecera. Tenta persuadir-se, enganar-se, de que já não é mais dotado de coração. Mas é!
Quem nunca se reconheceu em alguém? Sim, é dotado de coração! Ela veio como um anjo, e despejara toda a sua beleza; melancólica, mas linda. O coração dela, agora, é o dele também. Ela avisa que também vomita corações, um por dia quase. E ele acaba se reconhecendo nela, gosta disso. Num quarto repleto de corações expelidos, sobre uma cama com lençóis brancos, limpos e perfumados, se amam durante as noites geladas do inverno.

segunda-feira, 3 de março de 2008

Procurando Se Encontrar

Olhava-se no espelho e não se reconhecia mais. No seu espírito, ocorriam-lhe dúvidas se era ele quem olhava para aquele sujeito do espelho, ou o sujeito do outro lado que o fitava. Era incapaz de encará-lo. Tão logo seus olhos encontravam-se, desviava-os rapidamente.
Ódio...
Mais um espelho quebrado; mais um espelho desfigurara-lhe as mãos; mais uma vez não se encontrara naquele reflexo.
Em outros dias, ele já tentara ser ele mesmo. Agora não. Vive quebrando espelhos, um após o outro. E chega a odiar o sujeito que é incapaz de encarar.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Vigilante Invisível

Sinto que estou sendo vigiado e perseguido a todo o momento, todas as horas do dia. Algo vem me observando, me cuidando, me analisando. Sentado à mesa do bar essa sensação me acompanha, ela nunca me abandona.
Levanto e vou para o banheiro, tentar fugir do que me espreita. O banheiro minúsculo, cabendo apenas eu e a privada, nada mais. Continuo a achar que algo me olha e me escuta. Passo com a mão nas paredes de lajotas brancas. Corro com ela até todos os cantos, a fim de encontrar algum olho, algum ouvido, emergidos da lajota. Não encontro nenhum dos dois. Fico desnorteado. Volto para as mesas.
Novamente sentado à mesa do bar, rodeado de amigos, procuro me esquecer que estou sendo vigiado. Afasto essa idéia. Interajo com as pessoas. Adentro na conversa. Gesticulo brusco. Falo alto, quase grito. Tudo isso, pra ver se consigo afastar o que continua a me espreitar. Não consigo. Levanto-me outra vez e me dirijo ao banheiro.
Mesmo lá dentro, com a porta fechada e trancada, não consigo me sentir sozinho. Começo a ficar perturbado. Com a tensão, minhas mãos suam. Perco o controle dos meus movimentos, tornam-me incompreensíveis. Tenho vontade de gritar, esmurrar a parede, e depois sumir. Não quero mais ser vigiado.
Maquinalmente passo com a mão nas paredes. Não acho nem os olhos nem os ouvidos. Vejo a privada à minha frente. Raciocínio que ainda não conferi se o que me perturba esteja ali naquela água. Sem pensar muito, somente buscando acabar com aquela aflição, mergulho com a cabeça no vaso sanitário. Esforço-me para conseguir abrir os olhos debaixo da água. É apertado. Frustro-me, não encontro nada ali também. Tiro a cabeça do fundo do vaso. Depois dessa, fico mais desnorteado ainda.
Quando volto para o bar, corro desesperado para o balcão. Inclino-me para olhar detrás dele. Meus olhos inquietos correm por tudo esbugalhados, numa tentativa de flagrar meu espreitador. Nada vejo. Esgotado, me sento na cadeira junto à mesa novamente.
Perguntam-me sobre meu cabelo molhado. E eu confuso e aflito, apenas respondo que choveu muito durante o dia. Não aguardo comentários. Mesmo se houvessem não os ouviria. Não estava nem aí para aquelas pessoas que me olhavam assustadas agora. Suas vozes chegavam-me aos ouvidos mudas, indecifráveis. O que me importava realmente era o meu observador invisível. Os olhos dele deviam estar em algum lugar! Não é possível!
Encosto com a cabeça na parede. Inútil tentar me acalmar, não consigo. Meus pés batem no chão repetidas vezes: sobe e desce, sobe e desce. Meu corpo inteiro balança com a ação. O suor impregna minha pele. A camisa cola-me ao peito com o suor.
Insisto em ir ao banheiro, lá posso ficar cara a cara com meu vigilante. Vou até lá novamente. Fecho a porta. Giro a chave. Executo as mesmas operações das outras vezes: ponho a mão na parede, passo-a deslizando sobre as lajotas brancas por todos os lados, até todos os cantos. Fatigado, eu paro. Permaneço alguns segundos imóvel, olhando para a privada à frente. Algo também me olha: é o meu observador; meu vigilante; meu espreitador. Mergulho a cabeça na água de novo. Só que desta vez, puxo a descarga também. E eu me vou: sugado; sorvido; engolido. E sumo dos olhos, dos ouvidos, e de tudo que me cercava e me espreitava silenciosamente.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

Sempre Distrações

Sou muito distraído, por favor, não liguem.
Ando sempre dormindo pelos cantos.
Sempre divagando bobagens sem importância.
Se eventualmente me ausento muito, é por distração.
Pura distração, sempre olhando para o nada.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

O Que Era

Foi um brilho que surgiu repentino.
Se foi da mesma forma, de repente.
Se foi de supetão.
Não senhor,
Não era amor.
Era paixão.

sábado, 16 de fevereiro de 2008

Momentos Num Ônibus

Vou olhando, através da janela, a paisagem que corre lá fora. Dependendo da luz externa, posso ver meu rosto refletido no vidro. Assusto-me. Chego a me indagar: “Este serei eu mesmo? Pareço horrível.”. Vejo um rosto cansado, abatido. O suor não me é perceptível pelo reflexo, mas sei que ele existe. Sinto-o em minha testa. No entanto, não me é possível nem limpa-lo, passando a mão sobre a pele impregnada. Pois minhas mãos encontram-se fixas, segurando no apoio acima da cabeça. Além disso, o aperto entre os passageiros é tão grande, que um movimento desse tipo, é totalmente impraticável. O espaço de cada um dentro do veículo é estritamente limitado, estreitando a liberdade individual. Tirar as mãos do apoio, também é um risco, sendo que o ônibus passa por ruas muito esburacadas. E num relance, o balanço abrupto provocado pode derrubar-me. Portanto, permanecer de pé requer muito esforço, não sendo permitido descuidos por parte dos passageiros.
Olho para uma menina sentada ao fundo. Eu consigo vê-la, e ela, nem imagina que está sendo observada por alguém. Mesmo de longe, posso perceber seus olhos inquietos. Com a cabeça curvada para a janela, persegue com os olhos todas as coisas que passam lá fora. Certamente está perdida, confusa e aflita. Assim como meu rosto reflete-se cansado no vidro, ela bate ininterruptamente com as pontas dos dedos no corrimão à sua frente, refletindo também seu estado de espírito.
Corro a vista por todos os passageiros presentes. Nenhum deles olha-me nos olhos. Um ou outro me lança um olhar disfarçado, mas nunca nos olhos. Todos se encontram absortos em seus próprios pensamentos. Utilizando daquele tempo ali, para tentar solucionar os problemas de suas vidas. Comigo não é diferente. Busco amenizar e esquecer do meu cansaço, apreciando a beleza da menina aflita e confusa sentada no fundo do ônibus, tão linda.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

Sonho Confundindo O Real (e vice-versa)

No sonho
O real
Se confunde
Se funde
No profundo
Doutro mundo

É outra Lua
Outro Sol
Os mesmos
Olhos
A mesma
Sombra

sábado, 9 de fevereiro de 2008

Pesadelos-sonhos-delírios-lucidez para a Lua

Alguns pesadelos tornam-se realidade
E alguns sonhos se vão num copo de vodca.
Certos delírios vêm invadir meu dia
E aquela lucidez se vai num copo de conhaque.
Que necessidade mais absurda
A de querer se recolher do mundo.
Prefiro é me transportar para a Lua.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

Pensamentos de Rubian (passados num banco da Rua XV e na Praça Osório)

Eu a vi passar novamente. Outra vez não me viu! Não sei, pode ser problema de vista. Sim, é possível. Bom, eu quero acreditar nisso. Mas o que me resta de lucidez me alerta, alegando que estou enganado: ela nunca usara óculos, nem lente. Infelizmente eu lembro disso. “Pra que se enganar supondo um problema de vista? Você vai chegar aonde dessa forma?” Maldita lucidez! Faz minha mente dividir-se em dois. De um lado, a amargura de nunca mais ser enxergado por ela; do outro, uma ponta de esperança de reviver seus olhos. Há um remédio, há um remédio. Não pra mim: para ela. A vista dela certamente está embaçada; ou cansada; ou embriagada! É, com certeza, não me viu por conta de sua embriaguez. Estava bêbada! Mas eu a perdôo. Não quero brigar agora, me sinto cansado. Neste banco vou esperá-la passar outra vez. Ela vai passar. Sempre passa. Sempre embriagada. Sempre míope.
Vou aproveitar esse meu momento de espera, para vaguear por minhas memórias: no parque, sentado ao lado dela. Ouvindo o silêncio da vida. Conversando despreocupado. O sol já indo embora, despedindo-se de nós de uma forma linda, proporcionando-nos uma vista maravilhosa. Ela olhava para o céu avermelhado. Eu esquecia-me do céu. Seu rosto já era meu paraíso: sua boca, seus olhos, sua pele, seu corpo. Eu via apenas ela. Nada mais de pôr do sol. Meu céu vinha junto com seus beijos. Naquele gramado passamos toda a tarde. Era domingo. Ou sábado? Ou era um simples feriado? Que memória a minha! Esqueci-me.
Por quanto tempo já estou aqui? Não vejo mais pedestres. Ela passou de novo? Perdi-me em pensamentos. Como pude! Distrai-me! Distrai-me recordando de bons tempos vividos, “ou foram inventados?”. Minha cabeça dói; latejando, fervendo. Não posso acreditar o quão idiota fui em não vê-la passar outra vez. Devo procurá-la. Não pode ter ido muito longe. Ah, lá está ela. Consigo vê-la andando lá longe. Não posso tropeçar agora, vou correr. Meus pés estão me matando, trabalhei muito hoje. Estou a alcançando. Nunca imaginei que esta praça fosse tão longa. Olho pra seus cabelos balançando. Parece estar correndo também. Estará correndo? Terá acontecido alguma coisa? Acho que tem alguém a seguindo. Quem será? Não há mais ninguém aqui. Qual o motivo do medo dela? Talvez seja pela noite. A lua não nasceu hoje. Há muitas nuvens no céu. Oras, e essa praça! Que iluminação mais precária! “Você está enganado. Ela foge é de você” Não! Odeio esses pensamentos. Quem está no comando aqui sou eu. Ela está fugindo da escuridão, procurando alguma luz. Eu vou atrás dela. Eu já a perdoei, “mesmo?!”. Iremos começar tudo de novo, do zero, “de novo?!”. Ela aceitará, sei que aceitará. Uma nova vida se faz quando refletimos sobre ela mesma. Li isso em algum lugar. Suponho que de algum livro jogado por aí. Eu quero outra vida com Marina. Acho que a alcancei. Posso até ouvir seus passos, sua respiração ofegante. Eu reconheço desde aqui seu perfume. É ela! É ela! ”Inexistente! Inexistente!” Esses cabelos pretos, eu nunca me enganaria. Um preto que, refletido ao sol, torna-se mais lindo ainda. Neste momento está assim, refletindo o sol da manhã. O sol já veio dar o ar de sua graça. Curioso, ontem, a noite estava tão sombria, tão feia. E veja só o dia de hoje: abriu-se encantador. Que dia! Será ótimo restabelecermos nosso amor - “você nunca amou” - nessa manhã tão bela.
Oh não, ela tropeçou. Tenho que ajuda-la. Não agüento mais meus pés, estão doloridos demais. Minha vista já foi melhor também. Está tudo tão embaçado. “Onde está ela agora?!”No geral, minha vida sempre foi confusa. Ela ali caída - ”onde?” - e eu simplesmente apenas a observando, como um animal. Ela não me viu àquela hora. No fundo nunca a perdoei. Posso dizer que minha vista também não me deixou fazer nada: lógico que será uma desculpa, uma mentira. Aliás, ela é uma mentira. Marina é uma mentira.

domingo, 3 de fevereiro de 2008

Existencial

Você existe por um passo,
Você existe por um tropeço.
Uma existência sem explicações e sem porquês.
Uma existência tortuosa.
Você apenas existe, e isso é tudo.
Existir é explicação.
Existir é dúvida.
Você apenas existe, e isso é tudo: dúvidas, explicações e porquês.

Eu gosto de você

E PONTO FINAL

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

Sujeitos + Ou's

Sujeito forte é quem? Aquele que fecha os olhos sabidamente para os riscos; ou quem caminha sempre atento a tudo, sensível a cada movimentação?
Sujeito sabido é quem? Aquele que reflete inúmeras vezes antes duma ação; ou quem se deixa guiar por seus impulsos emotivos do momento?
Sujeito atento é quem? Aquele de olhar ligeiro; ou aquele de olhar racional e analítico?
Sujeito reflexivo é quem? Aquele que escreve; ou quem o lê?
Sujeito ser humano cabe em todos os ou’s possíveis. A escolha é livre.

domingo, 27 de janeiro de 2008

Selvagem Urbano

Acredito que eu esteja por volta de uns vinte anos de idade. Nunca fiz nada de produtivo. Nunca mais sai do meu canto, e nem cultivo relacionamentos. Sou um rato tipo urbano. Um tipo, que mora numa caverna de concreto, e foge da luz do sol. Inevitavelmente fui obrigado a cultivar algumas amizades: morcegos. Em troca do meu sangue, proporcionavam-me companhia; uma companhia vazia e de desafeto. Apenas visávamos o lucro de cada um, da forma mais egoísta possível. Aprendi a língua deles.
Alguns pensamentos se afloram: se acaso eu venha a rever pessoas, conseguirei estabelecer alguma comunicação? E meus modos, ainda são de um ser humano? Não sei, nunca mais vi nenhum.
Agora, mandei tudo à merda. Estou aqui, me embriagando, servindo-me da sangria dos morcegos. Estou bebendo meu próprio sangue por tabela. Tudo o que eles consumiram, eu consumo agora. Não reconheço meu sabor, nem mesmo aprecio este momento. E muito menos sinto-me feliz. Sou um sobrevivente. Sobrevivendo e vivendo à custa do meu próprio sangue.
Às vezes fico pensando, se lá fora, as pessoas não fazem o mesmo que eu para sobreviver. Como será que anda a sociedade? Muito progresso deve ter havido durante esse tempo em que estou recluso. Sou um selvagem agora. Não me adequaria ao mundo civilizado e organizado outra vez.
Selvagem é o que sou hoje. Selvagem urbano.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

Sonho

Tudo em meus sonhos não são coisas exatas e nem definidas, posso me encontrar num certo local, e logo em seguida já em outro. Ou talvez, o certo lugar pode estar me proporcionando conforto e alegria, porém instantes depois, angústia e desespero. Acredito que com todos ocorram as mesmas coisas. A seguir, irei (tentar) descrever um sonho que tive, incrementando alguns contextos. Talvez não obtenha um sucesso quanto à fidelidade dos lugares, das pessoas e da cronologia dos fatos. Mesmo assim, pode resultar numa história interessante – ou não! Portanto, buscarei ser mais fiel do que coerente. Aliás, todos sabem: nos sonhos quase nada nos parece ter sentido à primeira vista.

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Eu havia feito uma viagem, estava na praia com meus pais, num apartamento desconhecido. Necessitávamos de dinheiro para nos sustentar ali. Todos haviam abandonado suas ocupações antigas.
Encontramos uma alternativa para nossa subsistência, aparentemente conseguindo certo sucesso com essa nova empreitada: cuidávamos de crianças, tomávamos conta delas por dias a fio ou, até mesmo, meses.
Aos poucos, esses serviços vinham se tornando um negócio sério. Porém, mesmo assim, o local que usávamos era o nosso próprio apartamento – apertado e incômodo.
Via crianças chorando, babando, gritando, engatinhando, batendo os pés. Minha casa havia se tornado completamente numa creche, a qual mais se parecia com um hospício-mirim. Para aumentar mais ainda essa sensação de desconforto, meu plano de vista era da mesma altura da dos bebês, não os via por cima, mas olhos nos olhos. Sentia-me como um deles, espalhados pelo carpe.
Um pressentimento de que as coisas estavam saindo do controle invadia-me ao olhar para aquela confusão de crianças. Um dia, minha mãe pediu-me para cuidar especialmente de um bebê, pois estava extremamente ocupada em outro cômodo da casa (agora o apartamento não me parecia tão pequeno, e sim grande e sombrio, com cômodos ainda desconhecidos para mim). Eu acatei sua ordem, e fiquei vigiando o bebê. Então, por uma distração minha, a criança – muito ativa por sinal – desapareceu do meu campo de vista. No entanto, eu sabia que ela tinha ido para um corredor escuro, o qual me era totalmente desconhecido, mesmo sendo dentro da minha própria casa.
Eu corri atrás dela. Entrei no corredor escuro, e fui acabar num quarto que tinha uma janela que ia até o chão. Estávamos no térreo. Eu vi a criança passar pela janela, então fui desesperadamente atrás dela. Não podia estragar com o nosso sustento, seria suicídio. Para aumentar ainda mais minha aflição, fui parar numa calçada cheia de pessoas, via só suas pernas, esse era meu campo de visão. E nada de encontrar o bebê. Procurava em vão.
De repente, senti que todos me olhavam, num tom de reprovação e censura. Não havia percebido, mas eu estava nu. Senti-me profundamente envergonhado, e me esqueci completamente da minha missão, a qual me tinha feito sair para a calçada daquele modo.
Instante depois, parecia-me que haviam se passado anos, o bebê ainda desaparecido – na verdade, sentia que ele era o carrasco; o responsável pela desgraça a qual eu estava passando. Eu ainda permanecia parcialmente despido. Apenas uns trapos cobriam-me o corpo. Estava imundo e sem esperanças de voltar a ver minha família.
Lampejos de lugares invadiram minha mente: supermercados, hotéis, campos de futebol de cimento, ruas asfaltadas vazias. Por fim, acabei num terraço de um prédio.
Via de cima do prédio as outras pessoas com suas vidas: moleques jogavam bola lá embaixo num campinho, pássaros voavam livremente, velhinhos sorridentes carregavam sacolas do supermercado, guardas com uniformes azuis observavam os transeuntes. Todos pareciam zombar da minha desgraça repentina e ao mesmo tempo duradoura. Tinha a sensação de que tive tudo e perdi num breve instante.

ACORDEI.

domingo, 20 de janeiro de 2008

Esquizofrenia De Um Qualquer

Forjando uma realidade
Tentando escapar da realidade
Inventando qualquer verdade.

Absorvido pelo seu próprio mundo
Tido como esquecido pelo mundo
Terá ele ido muito fundo?

Criou uma cena que parecesse natural
Para seus sentidos acharem natural
Saírem sempre do real.

sábado, 19 de janeiro de 2008

Uma Carta

“... sou um cara egoísta, e que não tem nenhum interesse pelas outras pessoas.”

Essas foram as últimas palavras de uma carta de amor.
Porém, não as únicas.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

Depois De Um Café Sobram Os Porquês

Ele tomou um café e saiu. Depois, foi andar sobre os trilhos sem olhar pra frente, esperando o encontro final do trem.
Ela nunca notara aquele seu olhar vazio, aquele seu olhar vazio.
- Para o quê está olhando?
- Nada. Foi apenas um sonho, e acabei acordando.
Sonhava e acordava todas as noites.
Durante o dia, era aquele olhar vazio, aquele olhar vazio.
Ela definitivamente precisa encontrar forças.
Ela encontrou. Ela é forte agora.
Forte, da forma que ele jamais fora em vida.
Mas mesmo assim, há porquês que nunca se esclarecerão.
E causarão aquele olhar vazio, aquele olhar vazio.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

Não tenha medo do meu desconhecido.

Pois todos os dias, enfrento o meu vazio.

Ainda assim, estou aqui vivo.

Aqui estou, sussurrando ao seu ouvido.


Proteja-me de mim mesmo, eu lhe peço.

Com você eu sou outro, sim eu sou outro.

Tenho uma cura, por isso lance-me o seu fogo.

Mesmo assim, não sei se a mereço.

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Estenda-me a sua alma

Proteja-me de mim mesmo

Projete-se assim mesmo

Do jeito que és


Proteja-me de mim mesmo

Meu corpo e alma

Serão seus se quiseres

Eu prometo, eu prometo

sábado, 12 de janeiro de 2008

Um Homem Escreve:

Não tenho mais cama à minha disposição. Indiferente! Posso continuar assim, me deitando direto no chão. Dias atrás, ainda usava um travesseiro velho que encontrei. Hoje, nem isso me permito, é muita regalia, é dispensável! Este chão, cada dia me acolhe melhor, tomei gosto por ele. É simples: o sono chega, e eu logo me deito onde estiver, uma maravilha. Meu dormitório, portanto, não se limita mais num mísero quarto fedendo a mofo e habitado por baratas. Há noites tenho companheiros – não muito agradáveis, mas suportáveis: ratos. No começo, seus ruídos, suas inquietudes, incomodavam-me. Atualmente, é música aos meus ouvidos. Além do quê, fazem-me esquecer que só tenho a mim.
Da minha casa não me restou quase mais nada. A sujeira vem se acumulando pelas arestas, nem se parece mais com uma casa. Se um vento entra, é pra fazer o pó se levantar, ou erguer um odor já indescritível. As noites têm se tornado mais curta. O dia nem amanhece direito, e o sol já vem com seu brilho despertar meus olhos. Cansei disso! Semana passada, cobri as janelas com os lençóis, já inúteis a mim para seu uso comum. Mesmo assim, as noites continuam a me sufocar. Só que agora, perco o sono e o sol demora a chegar.
Ouço paredes rangerem; ouço os passos de alguém que não mora mais aqui. Lapsos de lembranças chegam-me como um raio, ferindo-me. Preferia não ter mais memória. Aqui e ali ainda encontro resquícios da vida que tive. Procuro esquecer. Não posso me lamentar. Balanço a cabeça, e vou me deitar novamente.
Ainda não sei bem o porquê de eu estar aqui agora, escrevendo no meu último pedaço de papel higiênico restante. Deve ser pela sede de me encontrar outra vez. Procuro-me entre essas palavras que escrevo. Cada letra; cada frase; cada linha; é como se fossem meu sangue que escorre para este papel. Não vou jogá-lo fora, e nem usarei para o fim que lhe é designado. Pois, acredito que ainda o encontrará, leitor anônimo.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

Terráqueos

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terráqueos
Entre as cores da vida
Ocupam o mesmo espaço

terça-feira, 8 de janeiro de 2008

Cinemateca de Curitiba exibe retrospectiva de filmes de Norman McLaren

A Cinemateca de Curitiba exibe, de 7 a 17 de janeiro, uma retrospectiva de filmes do cineasta canadense Norman McLaren, um dos principais nomes do cinema de animação. A mostra é composta por dez programas que reúnem e apresentam os filmes de McLaren a partir de diferentes recortes, técnicos e temáticos.

http://www.curitibainterativa.com.br/modules.php?name=News&file=article&sid=13207

Vale a pena ir assistir, as sessões são às 16h e 20h, até o dia 17.

Cinemateca de Curitiba: Rua Carlos Cavalcanti, 1174 – Centro

Alguns curtas dele:

Norman McLaren - Neighbours [1952]

Norman McLaren - Il était une chaise / A Chairy Tale [1957]

Norman McLaren - Boogie Doodle [1948]

segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

40

40 anos para se encontrar como pessoa
+ 40 para supostamente entender o significado disso
+ 40 para enxergar: o interessante na vida não são as respostas, são os enigmas


obs: inteiramente inspirado no conto de Lya Luft "Numa Cidade Distante", do livro Pensar é Transgredir.

Entenda Como Um Anúncio:

Serei breve e de poucas palavras:
Quero dar a cara pra bater. Quero andar descalço sobre o asfalto quente. Se for preciso, andar sobre brasas.

domingo, 6 de janeiro de 2008

O Escritor

O escritor cresceu na vida afetiva. Constituiu família, formou um lar. Largou dos vícios, desintoxicou-se.
Diverte-se indo aos domingos com a família no jardim zoológico dar pipoca aos macacos.
Alegra-se em brincar nos finais das tardes com os filhos no gramado de casa.
Ama sua mulher durante toda a noite, durante todos os dias.
O Sol, a Lua, o mundo, traz-lhe agora contentamento e felicidade.
Seus romances, no entanto empacaram. Suas personagens perderam a complexidade.
Sim, ele deixara de ser mais um escritor a procura de algo que preencha suas lacunas.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

O Vôo

Eu me encontrava num estado completo de sono, claro, depois de uma noite tão agitada que tive, merecia. Porém, fui interrompido. Com uma pancada na janela, que ao primeiro momento assustou-me, recebi o jornal diário. Somente com um grande esforço consegui levantar-me da cama. E estranhei o cansaço incrível que me invadia, considerei fora do comum.
Ao abrir a porta da sala, que dava para meu quintal, recostei-me involuntariamente na parede, consumido pela estranha fadiga matinal. Parei; Pensei; Tentei relembrar da tão agitada noite anterior: “Será que bebi demais?!” tal pergunta ecoava em minha mente. “Voltei da festa com meu carro, ou vim de carona?”. Inúteis questionamentos. De quê me adiantaria continuar ali, imóvel?
Finalmente, despertei de tais pensamentos. Caminhei até o jornal na calçada e o peguei. Nada de interessante. No entanto, algo atraiu minha atenção causando-me espanto. A placa que indicava o nome da minha rua, não era mais a mesma. Continha agora certa beleza em sua forma e nas suas letras, contudo, nada que amenizavam o efeito de pânico em mim. Tudo pelo fato de o nome da rua não ser mais o mesmo. Era agora NY-15. “Ah, eu bebi demais mesmo!” pensava eu, numa dose de pavor e sátira.
Até aquele momento, eu estava distraído o bastante para não perceber que meus pêlos branquearam, minha pele enrugara e, minha coluna doía insuportavelmente. Comecei então a correr, apavorado com a realidade a qual vivenciava.
As casas todas metodicamente enfileiradas e iguais. As ruas limpas e desertas. Estava completamente só naquele lugar. De repente, ouvi um estrondo como o de algo imenso se abrindo. Minha vista embaçou; cegou-me. Meus sentidos se perderam. Eu parecia voar. Voava livremente. Agora tomado por uma felicidade plena a qual pressentia enfim ser eterna.