segunda-feira, 23 de novembro de 2015

o que sobrou

e a graça toda acabou, não é mesmo?
o que sobrou foi só esse gosto amargo
na minha boca que seca todos meus sentidos
o meu sangue gelando meu coração de espinhos

realidade que não consigo capturar
minhas conexões são rompidas
relações sociais destruídas
então eu olho pra você e não esboço reação
de fato não tenho mais nenhuma emoção

acontece que não estou ali
mas onde eu estou de verdade?
a graça toda acabou
o gosto amargo é o que sobrou

e quando todos vão embora
as luzes que se apagam
o escuro da desesperança
é somente o que me sobra

então eu não consigo dormir

quarta-feira, 29 de julho de 2015

rubian (alter ego onírico, parte II)

Rubian, um jovem de vinte e poucos anos que acha já ter vivido tudo na vida, e que todos seus sentimentos futuros serão apenas resquícios dos que já sentira antes. Ele ainda não compreendeu a finitude do seu tempo se esgotando como areia numa ampulheta. Não sabe também que seu retrato mais fiel lhe surge todas as manhãs, logo após que acorda. Sua incompreensão de si mesmo desespera-o profundamente. Vai ver por isso desacredita tanto no futuro e não consiga identificar suas verdadeiras necessidades. Por mais que ele passe horas a pensar, não encontra saída desse labirinto (o deserto é o pior deles). Pensa demais, e dá infindáveis voltas pelos mesmos caminhos. Dá infindáveis voltas em círculo sem perceber.

Nos momentos logo após despertar dos sonhos mais profundos é que ele consegue uma rápida imagem de seus sentimentos mais puros: é o que ele exaustivamente tanto busca reconhecer, simbolizar e expressar. Então durante este rápido lampejo, é ainda capaz de se imaginar vivendo para sempre nos seus sonhos, numa espécie de viagem sem volta (seria um tormento, mal ele sabe). Ou se tenta enxergar sua vida de um modo diferente, tornando-a um pouco mais interessante e onírica como nos quadros de Escher ou mais colorida e alegre como nos de Portinari.

Porém, os primeiros minutos do amanhecer passam-se sempre imperceptíveis e ligeiros. E antes mesmo de terminar seu café-da-manhã ele já se esqueceu de tudo que sonhara, das pinturas com que se maravilhara, das histórias que vivera. Então, no dia-a-dia, cala-se – já dissera tudo o que tinha para dizer. Novamente nas noites solitárias, revive em seus sonhos as situações mais ordinárias que ganham brilhos fantásticos e incríveis, então Rubian mostra-se outra pessoa – seu verdadeiro eu. Pena que só para ele mesmo (ou nós mesmos). E por tão pouco tempo (embora, aqui, a passagem do tempo de fato não exista, passado e futuro se confundem e o presente é um grão de areia que voa a esmo).

E foi no deserto de Abulafia que enfim encontrei Rubian vagando perdido e angustiado. Era um dia escaldante e interminável, como toda a eternidade por aqui.


*Reconheço que em outras eras, antes daquele tempo, eu também passara por um período que não me compreendia direito, não sabia nem quem, nem o quê eu era realmente. Assim como Rubian. Mas isso não durou para sempre. E essa é outra história. A minha.

quarta-feira, 15 de julho de 2015

alter ego onírico

Eu sou Kuranes. Outros também têm o meu nome, inclusive aquele de Celephaïs, que vive nos vales verdejantes de Ooth-Nargai. Eu, diferentemente, habito o grande deserto de Abulafia. Aliás, eu Sou o deserto e a areia e o vento. Sou feito das suas dúvidas mais impertinentes e tão frequentes, feito da poeira acumulada de todas as suas vontades e planos não realizados em vigília. Rubian, eu sou seu alter ego onírico.

terça-feira, 14 de julho de 2015

atropelado

quando tropecei no meio-fio
que de tão escorregadio
me fez cair na rua
eis os versos que pensava naquele meu derradeiro instante.

era algo com:
desde sempre estar fadado
a morrer atropelado
e não acreditar no meu passado
fora em vida meu maior pecado.

terça-feira, 7 de julho de 2015

chuva que nunca para

Penso se você me conhece realmente. Sem todas essas máscaras com as quais me escondo durante as noites. Ébrio, distante, alucinado. Sem conseguir contato – por mais próximo que esteja – com ninguém. Flutuo, mesmo que eu tente me agarrar aos seus pés, mãos, braços, cérebro. Não alcanço seu paralelo. Despenco.

Então tentei dançar. Ao buscar fazer par, teu olhar nervoso me indagaste o incompleto. Quando seus braços tentaram me abraçar, imaginei-os tentáculos, apenas. Um livro que li, não minha vida. Inquieto, não compreendo a realidade naquele instante.

Fujo. Me acalmo e vou para trás do bar: discuto, gesticulo, me exalto com amigos, por mais que eu sempre tenha dúvidas do meu verdadeiro valor (não é quanto eu ganho pelo meu suor e sangue).

Outro dia. Noite, na verdade. Após um trabalho duro, exaustivo, porém recompensador no final (será que eu sou o quanto eu ganho?). Penso em você novamente. Realmente nunca me vira sóbrio. Estou na mesa do bar, mais um bar, sozinho, alterado, com uma bera à minha frente. Bebo. Penso. Sorrio e me frustro. Me pergunto se ainda chove lá fora. Pois pendurei meu casaco na cadeira ao lado, encharcado.

Estarei molhado com essa chuva. Ou imaginei lágrimas de meu desespero, de uma chuva que nunca para?

quinta-feira, 23 de abril de 2015

um spectrum

Ainda que eu possa ser uma imagem fantástica de um morto, eu também sou luz. Não aos olhos dos transeuntes desse paralelo que não existo mais. Deles ainda não, mas seus dias hão de chegar também. Posso ser chamado de spectrum se preferir latim ou espectro marginal se tentar ser mais realista.

Eu sigo na escuridão, deslizando por ruas e sombras dessa cidade fria. Percorro-as invisível, ouvindo vozes, burburinhos e fragmentos de conversas dispersas. Penso se tudo isso é o resquício da minha memória quase apagada de uma vida já distante, ou se minha própria realidade é que nunca passara desses acasos estilhaçados. E que somente agora estou tentando remontar os cacos dos acontecimentos. Remontar a minha débil e tênue existência.

Ao vagar incerto, meus sentidos aguçados causam-me um turbilhão de sentimentos por segundo. Veloz demais para eu conseguir compreendê-los. Veloz demais ao ponto de romper as ondas por onde eu flutuo: como um anjo eu caio no chão. Um brilho em queda espiralando à sua volta, invisível ao seus olhos tão humanos. Numa frequência que você jamais enxergará em vida.
 
Mas seu momento igualmente está por vir. Pois, depois que seu tempo da matéria terminar, um spectrum, é o que você também será.

terça-feira, 7 de abril de 2015

um amor tipo abstrato

enfim não era esse o nosso trato?
um amor assim desencanado,
desenfreado, apaixonado,
amor e ódio lado a lado.

e por mais que eu tente 
me expressar
te impressionar
tentar tornar isso real

eu volto ao fato
que meu amor
é abstrato.

terça-feira, 3 de março de 2015

tempo distorcido quase frito

To doidaço, to doidaço... Eram essas as únicas palavras que ele dizia. Eu, sentado à sua frente, tentava captar sua mente. Não entendia suas expressões e meus óculos escorregavam do meu rosto. Ele suava, esfregando as mãos na sua cabeça, freneticamente. Tentei olhá-lo nos olhos e buscar alguma fagulha de lucidez. Impossível, realmente impossível. Principalmente porque eu também estava mais que doido, eu quase surtava de doidera. De fato, a única coisa que eu temia mesmo, era estar pior que meu amigo e então perceber que na verdade, quem estava surtando era eu. Ou que dois surtados em pleno Largo da Ordem não seria nada bom.

Sentados no Bar do Matias, com toda essa nossa inquietação, uma dúvida cruel começou a remoer meu cérebro e fazer meus dentes coçarem: afinal, há quanto tempo já estávamos sentados ali? Porque pra mim já havíamos ficado uma vida inteira naquela mesa.

Vacilante, perguntei ao Thiago se ele sabia há quanto tempo. Mas é claro que não sabia. Àquela altura, duvido que nem seu próprio nome ele não soubesse mais. Pelo menos do meu nome eu ainda me lembrava. Na verdade o que eu não conseguia discernir direito mais, era a minha idade naquele momento. Porque na minha cabeça já haviam se passados alguns anos enquanto aquela cerveja esquentava dentro da garrafa em cima da mesa entre nós.

Então não me contive. Ainda meio relutante, chamei a mulher do bar que nos atendera antes. Uma negra que parecia ter a idade da minha avó. Perguntei a ela há quanto tempo eu e meu amigo estávamos sentados ali. Ela riu meio desconfiada. Mas o caso pra mim era muito sério, repeti a pergunta. Mesmo achando que eu já soubesse a reposta e estivesse debochando dela, enfim ela respondeu: Ué! Vocês acabaram de sentar aí, nem a cerveja tomaram ainda!” Incrédulo, eu perguntei se ela tinha mesmo certeza daquilo, se não estava se confundindo – afinal pra mim ela era uma velha muito louca. Na verdade, acho que perguntei algumas vezes até perceber que eu já estava insistindo demais na questão. Olhei para o Thiago e ele só me disse: “To doidaço, mas acho que é isso mesmo, já faz umas horas que estamos aqui”. Cara, não queria mais aquela confusão.

De súbito me levantei, sorri e meu cérebro derreteu suave.

Olhando para as nuvens enfim compreendi. Afinal de contas, eu já estava bem mais velho e, portanto, com sabedoria suficiente para essa compreensão: de que o tempo é vivo por si só e tem um poder tremendo de se distorcer. Eu só estava dançando com ele. E eram os céus que entoavam nossa música, num embalo quase que eterno. Numa orquestra nota a nota majestosamente frita. Um momento mais do que sublime, surreal.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

TÃO NOSSO

sendo uma alma tão desordenada
errante me perdi há muito tempo
vagando por estreitos caminhos tortuosos
me equilibrando pra não cair em meus abismos

mas quando estou ao seu lado
caminhos surgem ensolarados
num tão nosso mundo que criamos
numa tão nossa realidade que escapamos

então na cama debaixo dos lençóis
ou nas praças sempre a conversar
andamos pela cidade de ruas sem fim
sentindo-nos os donos desse mundo

desse tão nosso íntimo paraíso