quarta-feira, 12 de março de 2008

Acordou De Repente

Acordou de repente. Somente abriu os olhos. E o que viu - o que conseguiu distinguir naquela escuridão - foram dezenas de pessoas sentadas amontoadas a sua volta. Apenas uma lâmpada cintilava quase em vão; uma luz amarelada, meio apagada, realmente inútil para iluminar aquele lugar. Percebeu que se encontrava num porão de uma casa velha de madeira. As paredes do porão eram de um branco amarelado pelo tempo. As outras pessoas, ou olhavam para baixo, melancólicas, perdidas e sem esperanças; ou olhavam para cima, como que rogando por um socorro dos céus. Todos imundos, pelo que ele conseguia perceber.

Enfim, olhou para si próprio, também se encontrava imundo. Estava descalço. Os pés sujos de sangue, barro empastado, e cinzas. Lampejou-lhe à mente uma casa pegando fogo, e uma fuga desesperada – a sua fuga.

O que quebrava o silêncio angustiante eram os gemidos de alguém em desespero, porém, sem forças para fazer algo mais do que simplesmente gemer, ou o barulho de um esguicho, provavelmente alguém vomitando. O ar chegava-lhe às narinas e adentrava no seu corpo queimando-o por dentro, era o odor da merda e dos vômitos invadindo-o. O ar estava sólido. Alguém tossia ao seu lado, outro resmungava no outro canto, no entanto, jamais veria os rostos de quem fazia tais coisas. Sentiu-se só.

Não compreendia por que estava ali. Deu-se conta de que sua memória esvaziara-se. Não conseguia lembrar de nada anterior àquele porão, nada de antes de abrir os olhos subitamente e se deparar com pessoas que jamais vira, todas castigadas pela desesperança estampada em seus olhos. Não sabia o quê era, e nem quem era.

A fome ia apertando suas entranhas. Tentou se levantar, mas, foi traído pelo seu corpo, incapaz de se levantar um palmo do chão. Era a fome que o derrubava; era aquele lugar que o derrubava; eram aquelas pessoas que o derrubava; era aquela amnésia que o derrubava. Estava simplesmente acabado. Perturbava-se ao lembrar que não se recordava de definitivamente nada, apenas da casa pegando fogo, e da sua fuga. Mais nada vinha-lhe à mente acerca de seu passado.

Ouviu o vidro de uma janela se quebrando, não conseguia distinguir se foi ao longe ou se foi perto que se quebrou o tal vidro. Lá em cima, uma rádio ressoava uma música árabe. De repente, o som cessara. Parara ante mesmo de a música terminar. O que se fez ouvir depois, foram botas que batiam no chão do andar superior. Muitas botas. Produziam um som assustador. De fato, todos arregalaram os olhos assustados. Aguçaram os ouvidos e se encolheram.

De súbito, a porta que dava para o térreo se abriu. Surgiram então homens com uniformes e munidos de armas. Eram soldados. Gritavam palavras desconhecidas, de uma outra língua.

As pessoas no porão quase não reagiram, permaneceram paradas, estáticas pelo terror. Da mesma forma que os soldados entraram abruptamente, começaram a atirar nos esfarrapados ali presentes de repente. Um a um, pretendiam matar a todos. Pareciam economizar balas, pois, metodicamente, disparavam apenas uma bala certeira no meio da testa de cada um. De tão exaustos, ninguém esboçava alguma atitude de tentar fugir e sobreviver àquilo. Os olhares eram como os de cordeiros que já sabiam que isso iria acontecer a eles, e que não havia nada a se fazer. Resignados. Uma morte resignada.

Enfim, chegara a sua vez. E foi aí, frente a frente com uma metralhadora russa Kalashnikova, que compreendeu – lembrara- o quê era: um órfão, um refugiado, um acuado de guerra. E em breve - já tinha esta convicção - tornar-se-ia mais um fantasma de guerra com um furo no meio da testa. E suas lembranças; sua vida; sua personalidade; seus conhecimentos; sua história; logo contrastariam em vermelho com a parede amarelada detrás dele.

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