segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

TRIBUNAL E VEREDICTOS

Era noite avançada, e Ferreira se encontrava no bar. A madrugada caminhava lenta. O amanhecer muito longe. O boteco de madeira não se encontrava nem muito cheio, nem muito vazio. Uma luz meio apagada, moribunda e amarelada iluminava o lugar. A luz vinha de dois abajures de teto – o terceiro estava quebrado. A sensação era a de luz de velas.
Um dos abajures estava sobre a mesa de sinuca, na qual Ferreira jogava uma partida. Era uma partida disputada apenas por ele mesmo: Ferreira frente Ferreira; aquilo era essencialmente sua alma em jogo. Não deveria ser diferente, não deveria haver interferências ou interrupções. Alguém por acaso perturba um ser quando este se encontra em transe? Não, não se deve acordá-lo.
O outro abajur encontrava-se ao lado de um gordo careca enorme de cavanhaque, na altura de seus ombros. Ele empurrava mecanicamente aquela coisa – que mais parecia um chapéu de japonês amarelo – para frente. Rangendo feito lamento de metal, ou um ranger de dentes metálicos, a luminária ia e voltava para a sua mão, então ele tornava a empurrá-la. Mas talvez o abajur não fizesse barulho algum, e aquele som fosse o de um relógio próximo, confundindo a cabeça de Ferreira. Juntamente com as batidas de suas botas, eram os únicos sons escutados no bar. Passos para lá e para cá buscavam o melhor ângulo para a próxima tacada.
Um clima hostil parecia tomar conta do local. Aquelas pessoas envolta da mesa observando Ferreira jogar. A visão de Ferreira alcançava somente até o pescoço dos espectadores, pois ele estava inteiramente focado na partida, e via-os apenas ao fundo da mesa; eram meros coadjuvantes, talvez até dispensáveis.
- Quando é que acaba esta partida afinal? - Perguntou o gordo careca, que surpreendentemente saiu do seu lugar para o encontro de Ferreira.
Enquanto a mente de Ferreira ainda raciocinava a mil por hora, ele conseguiu parar por um segundo e situar-se. Pôde reparar que aquele sujeito estava vestido com uma camisa do Johnny Cash, resolveu chamá-lo mentalmente de Johnny.
- Quando eu torrar as 15 fichas que eu comprei. – Conseguiu responder, impaciente.
- Bom, isso é um problema. Dê uma olhada ao redor, quanta gente tá querendo jogar uma.
Foi aí que se deu conta realmente, praticamente uma multidão envolta.
- Meu dever é acabar com isso hoje. – Ignorando, deu progresso a partida.
Conseguiu ainda dar uma última tacada antes que Johnny o atacasse. Johnny acertou com um taco o seu estômago; depois quebrou o taco na mesa e partiu para a garganta de Ferreira. Ferreira ainda meio desacordado deu um soco na barriga gigante de seu inimigo. Johnny então revelou fraqueza, pois cambaleou tanto que deixou que fosse possível Ferreira destrinchar seu ódio.
O bar esvaziou-se, foram todos embora. Não era da conta de ninguém aquilo tudo, então saíram normalmente viver suas vidas. Alguns pegaram um táxi, outros foram a pé, não importava.
O ódio de toda a vida de Ferreira traduzia-se agora em golpes que balançavam a barriga de Johnny. “Quando é que vou parar?” perguntava-se Ferreira, fora de si. E agora, vendo seu adversário começar a babar feito cão com raiva é que não queria parar mesmo.
Como um mamute abatido, Johnny despencou ao chão. Ferreira então abaixa as calças de Johnny até a altura de seus joelhos, depois aperta com o taco seu saco contra o piso. O saco começa a inchar. Fica primeiro vermelho, roxo, azul... Multicolor. Feito sapo coaxando o saco infla mais ainda. “Não quero matá-lo” pensa Ferreira. O suor abundante em suas mãos revela nervosismo. “Por que me incomodaste?”
Então acontece o que parecia iminente: o saco estoura. Com o estouro o bar fica repleto de mini-johnnys pelo ar. Uma explosão de Johnnys. Todos a encarar Ferreira. Fitando-o nada satisfeitos. Derrubam todas as bolas da mesa de sinuca restantes e dizem “Fim de jogo”.
Em uníssono para Ferreira:
- É chegada a sua hora.
- Ninguém me diz quando é chegada a minha hora. Talvez ela nunca chegue. Estava eu no meu tribunal agora mesmo, quem sabe eu ganhasse. Mas fui interrompido.
- Nós somos seu veredicto. No seu último lance você fez tudo o que desejou. Somos seu veredicto.
Ferreira não pode mais com a sinuca, nem com Johnnys ou com a madrugada. Saca sua arma. Atira na sua mão esquerda.
- Estas mãos que já mataram e já roubaram.
Atira nos sues pés.
- E estes pés que já fugiram do mundo há muito tempo.

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